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O Quarto Poder
(Mad City)
Estados Unidos, 1997
De Costa-Gravas.
Com John Travolta e Dustin Hoffman.
Até que ponto o que vemos é a realidade? Até que ponto a notícia a qual estamos nos deparando é objetiva e não apenas uma sombra daquilo que realmente é? Não só voltar às teorias filosóficas da Antiguidade sobre a verdade intocável, mas o ponto a ser tocado está mais no que os teóricos da comunicação norte-americanos do inicio do século XX chamavam de Teoria da Agulha Hipodérmica, a Bala Mágica que penetra a partir da mídia para dentro da cabeça da massa, violenta, sem dificuldades.
A realidade que se torna espetáculo e o espetáculo que se veste de realidade. Com ingredientes elaboradamente bem utilizados, a mídia dá viés hollywoodiano aos fatos da grande rotina social e ainda veste seus personagens nos ares de mocinhos e vilões (esses últimos podem acabar amargando a posição de inimigos de uma nação e de forma quase dogmática). É esse o campo explorado – com cautela – em O Quarto Poder (Mad City, EUA, 1997): a força que a mídia tem de influenciar os movimentos dentro da sociedade de acordo com lógicas próprias e a atitude de estrelismo e irresponsabilidade de seus profissionais, que ferem a ética em busca de um furo e de pontos de audiência.
Sam Bailey (John Travolta em sobrepeso) é um segurança de museu de uma cidade do interior norte-americano recém-demitido pela Mrs. Banks (Blythe Danner), manda-chuva do museu em questão, para corte de gastos. Revoltado, Sam resolve ter uma conversa séria com sua antiga patroa, levando uma arma e dinamites para que, segundo ele, “pudesse ser ouvido”. As coisas saem de controle e Sam faz Banks, uma professora e seus pequenos alunos de uma escola primária, visitantes ao museu, e um repórter em decadência – que estava no banheiro, conversando com seu pênis – de reféns. O repórter, Max Brackett (Dustin Hoffman, eterno Rain Man), que noticiava justamente os cortes na receita dos museus do Estado, vê a situação – ainda da porta do banheiro – como uma “matéria quente” que pode re-alavancar sua carreira e colocá-lo nos holofotes da mídia.
O filme mostra a cada investida de Brackett e de seus concorrentes como a figura da mão da mídia apontando as verdades que o público deve acreditar, culminando a batalha para persuadir a opinião geral acerca de um dos dois lados da história de Bailey: o vilão ou o coitado. Max faz furos ao vivo de dentro do museu, ao lado do aloprado sequestrador – que mostra como única motivação a fazer o que fez a preocupação em não ter como garantir a sobrevivência de sua mulher e filhos. De fora, tais concorrentes de Brackett mostram uma imagem perversa e criminosa de Sam, até mesmo forjando depoimentos e informações. Por desatenção, o ex-segurança fere o antigo companheiro negro de guarita, sendo maquiado, então, como delinquente racista. Na contracena, Brackett repreende sua companheira de equipe por socorrer o homem ferido, em vez de filmar sua agonia.
O diretor Costa-Gavras, que mais tarde, novamente, abordou o desespero causado pela perda de emprego em O Corte (Le Couperet, França, 2004), enche o filme de simbologias para além de uma leitura liminar. Desde um sapateador dançando na camada posterior do ângulo em que Brackett aparece reportando o silêncio e a fuga de um político suspeito de corrupção logo no início da história ao movimento de abutre-sobre-carniça que os repórteres faziam a cada pessoa que cruzava a porta do museu para fora. Pode-se qualificar a produção como metalinguisticamente hipócrita, mas de forma magistral, a hipocrisia que gratina os argumentos é a faca – talvez, assim, de dois gumes – que esburga, com a acidez da (auto)crítica, um universo à vistas perverso que é o do mundo midiático.
No prosseguir da trama, a imagem de Bailey, o protagonista do “circo” – palavra várias vezes metaforizada no filme – e único personagem não sucumbido à tentação da fama e do prestígio, e Max, tomado, por sua vez, de tal tentação, têm seu golpe de misericórdia: o primeiro com sua desastrosa entrevista exclusiva ao vivo para a TV aberta em horário nobre, com Larry King; e o segundo com a divulgação de gravações que o incriminam de compactuar com o segurança delinquente (demérito de Max que tentou manipular a situação várias vezes para tornar sua notícia cada vez mais cinematográfica). É nessas cenas que coroa-se o mencionado quarto poder, quando Larry King promove um verdadeiro julgamento via tubo de íons. Como seu último passo, ainda (mais) aflito, Sam liberta as crianças e decide se entregar. Neste ponto Max já está compadecido do personagem de sua grande reportagem.
Vivemos, hoje, na era da imagem, na era da palavra e, da prensa de Gutenberg à internet num celular touchscreen, nos transformamos nos que compõem a plateia e a batuta, com toda liberdade que nos ata, nessa era de comunicações virtualmente “democráticas”, à necessidade de se estar sempre informado e, em princípio, de ter um rótulo mercadologicamente aceitável, preferível acima, até mesmo, da consistência e seriedade de conteúdo. E é aí que, com ingredientes elaboradamente bem utilizados, a mídia dá viés hollywoodiano aos fatos da grande rotina social e ainda veste seus personagens nos ares de mocinhos e vilões. Sam Bailey, por não suportar a pressão da indumentária vilanesca, desiste literalmente do jogo e Max Brackett, como um ápice metalinguístico, um paralelo de definição em relação à massa não-amorfa, mas alienante que se senta na frente da TV (e não só nas cenas do filme), sintetiza todo o argumento na frase: “Nós o matamos!”
Que seja hipócrita, O Quarto Poder reabre a eterna discussão, que ultrapassa a prisma que perquire a mídia: até que ponto o que vemos é a realidade? Até que ponto a notícia a qual estamos nos deparando é objetiva e não apenas uma sombra daquilo que realmente é? A resposta eu posso até tentar dar, mas poderia muito bem não ser a verdade, com certeza.
(A mão que move o mundo - Renato Fragoso. Texto original disponível em brisadavaranda.blogspot.com)
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